Mario Rui Pinto (de Portugal, com exclusividade)
Nunca o anarquismo foi
tão actual. Esta frase pode parecer inconsequente, escrita por quem
acredita num conjunto de ideias minoritário, ou mesmo inexistente em
muitas partes do globo terrestre. A sua força actual para
influenciar movimentos sociais ou correntes de opinião é
praticamente nula, mesmo em Estados onde, no passado, chegou a ter
alguma capacidade de mobilização popular. E no entanto…
O capitalismo evoluiu
de forma muito diferente dos escritos de Marx e a transformação do
mundo tem sido muito mais complexa do que ele previa. Muito
provavelmente, o capitalismo não há-de acabar devido aos efeitos de
uma grande crise final motivada por contradições internas. Bem pelo
contrário, o capitalismo tem aproveitado todas as suas pretensas
crises para intensificar o seu grau de exploração sobre os
indivíduos. E isto porque, ao contrário do que a classe dominante
proclama hoje em dia, não há crises no capitalismo É o capitalismo
que é a própria crise.
Não por acaso, também
o “papel da classe operária” na transformação de toda a
organização social acabou por ser muito diferente do que Marx
previu, no fundo limitando-se a ajudar na construção de uma
sociedade ainda mais opressiva e integrando-se plenamente no Estado e
no sistema tecno-industrial.
A sociedade actual
inflige inúmeros estragos ao ser humano, materializados em
desigualdade, opressão, pobreza, injustiça, angústia, tensão
nervosa, etc. e estragos ao meio natural, como, por exemplo, abate de
florestas substituídas por construção, desaparecimento de espécies
vegetais e animais, poluição do ar e da água. O progresso
tecnológico provocou profundas alterações na sociedade e na
biosfera. Esta modificação tem por consequência a desestabilização
da vida no planeta que é cada vez mais nefasta. O que nos revela,
pois, o presente?
Revela-nos, em primeiro
lugar, que a sociedade actual não é justa, nem é pacífica a sua
relação com a natureza. O Estado e o sistema tecno-industrial,
essência e armadura da classe dominante da nossa época, gera a
domesticação pelo capital dos seres humanos e a destruição da
natureza, como resultado do espírito de lucro de alguns à custa do
trabalho forçado de muitos; mantém e fomenta a opressão do
dominado como consequência do uso do direito do dominante; torna o
ser humano cada vez mais abstracto, deixa de ser um ser da natureza
para se tornar um ser da tecno-indústria, logo do capital; conserva
sem questionar uma fé cega no progressismo científico e técnico.
Revela-nos, em segundo
lugar, que este sistema produz muitos estragos muito rapidamente.
Engendra guerra com armas cada vez mais destrutivas; energia nuclear
e o decorrente lixo atómico; poluição de diferentes tipos;
aquecimento climático acelerado; desenvolvimento das cidades e
urbanização do campo; envenenamento dos recursos naturais;
aniquilamento da biodiversidade; substituição possível ou provável
dos seres humanos por máquinas inteligentes; manipulações
genéticas dos seres vivos; dominação das grandes organizações e
impotência dos indivíduos; propaganda e as diversas técnicas de
manipulação psicológica; problemas psíquicos da vida moderna,
etc. Tudo isto tem por consequência um maior controlo e vigilância
de todos os indivíduos, uma submissão ainda maior aos imperativos
técnicos.
Finalmente, revela-nos,
em terceiro lugar, que este sistema engendra um cada vez maior
empobrecimento de cada vez mais indivíduos, em contraste directo com
o enriquecimento desmesurado de apenas alguns; a perda de saberes
elementares para uma vida autónoma; a destruição ou a apropriação
capitalista dos elementos que a natureza oferecia ao ser humano
gratuitamente.
Mas para quem é
anarquista nada disto é novo. Há mais de cem anos que os
anarquistas apontam e denunciam os perigos e males desta sociedade e
para onde ela nos conduz. O consumismo, a ganância, o lucro, a
irracionalidade produtiva estão a conduzir esta sociedade ao
esgotamento de recursos naturais não reprodutivos, situação que
poderá pôr em causa o futuro das próximas gerações. Para se
reproduzir, o capitalismo precisa de desenvolvimento contínuo,
acelerando este processo até à exaustão. Ora isto é incompatível
com uma vida sustentável a longo prazo.
As soluções
tradicionais de expressão política nas sociedades ditas
democráticas – o voto, os partidos, os sindicatos – estão cada
vez mais desacreditadas face não só à sua incapacidade para
encontrar soluções, como mesmo à sua conivência com formas de
exploração capitalista, corrupção e nepotismo. Neste momento, o
Estado e o sistema político que o sustenta, são os principais
garantes do capitalismo, sendo muito ténue a fronteira que os
separa. Não foi por acaso que, no início da mais recente “crise”,
todos os governos vieram em auxílio do sector financeiro –
precisamente o sector apontado como seu principal responsável –
negligenciando por completo falências de empresas que conduziram
milhares de trabalhadores ao desemprego.
O que se passa hoje em
dia em alguns estados europeus é que este cenário já foi
compreendido, com um maior ou menor grau de consciencialização, por
alguns estratos da população, sobretudo aqueles de onde a luta tem
de partir: desempregados; marginais por escolha própria; minorias
perseguidas pela moral dominante; jovens que tendem a recusar, mesmo
que temporariamente, o tipo de vida que os espera; movimentos e
associações de indivíduos que, de uma forma não-hierárquica,
lutam contra os projectos tecno-industriais; indivíduos e grupos que
praticam uma vida simples, denunciando o consumismo e o produtivismo
e rejeitando a vida complexa e doentia das áreas altamente
urbanizadas; trabalhadores contrariados, que já compreenderam que a
sua emancipação não está no aumento de trabalho ou na
reivindicação de um pleno emprego estúpido, destrutivo e
envelhecedor, mas na superação de uma sociedade que lhes impõe a
escravidão assalariada produtora de objectos muitos deles inúteis;
movimentos de mulheres que já perceberam que o verdadeiro feminismo
não é ter direito a voto, nem ter o direito de ser tão ou mais
explorada que o homem no mercado de trabalho.
Ficam de fora os
grupos, inclusive de trabalhadores, que estejam muito integrados no
mundo tecno-industrial e enquadrados por organizações sindicais
e/ou partidos políticos. Estes grupos, aparentemente de «oposição»
ao sistema ou mesmo «revolucionários», continuam a entender os
problemas em função da situação económica e social do início do
século XX, sem compreenderem os novos problemas. Até ao dia em que
tiverem uma nova tomada de consciência, estes grupos estão de tal
maneira enquadrados no sistema, são de tal maneira manipulados pelas
elites político-sindicais, que ainda não conseguiram perceber que
as suas reivindicações e lutas parciais fazem parte do próprio
sistema e é utilizado por este na sua estratégia de exploração.
Em Portugal, por exemplo, perante a promulgação pelo actual governo
“socialista”(*) de um novo pacote de medidas ditadas “pelos
mercados” e que só irá aumentar o empobrecimento generalizado e a
taxa de lucro do capital, respondeu a central sindical mais
importante – Confederação Geral dos Trabalhadores
Portugueses-Intersindical, mera correia de transmissão do Partido
Comunista – com uma greve geral de 1 dia para que, nas palavras do
seu secretário-geral, “seja dada alguma coisa aos trabalhadores e
eles não venham para a rua, porque a rua não negoceia”.
As lutas que já se
desenvolvem, por motivos vários, nas ruas da Grécia, de Itália, de
Inglaterra, de Espanha ou de França são sinónimo de que, apesar
destes grupos ainda serem fortemente minoritários, começaram a pôr
em prática formas de luta sem compromissos, de acção directa,
não-hierárquicas, ou seja, formas de luta libertárias, e que, como
tal, escapam ao controlo de partidos, de sindicatos, da ordem
estabelecida, e já arrastam com eles sectores menos activistas da
população.
Apelidando estas lutas
e os seus protagonistas de “terroristas”, metendo-as no mesmo
saco do radicalismo islâmico ou meramente político, o Estado
intensificou, como nunca antes o fizera, todo um processo securitário
de controlo dos cidadãos. A desculpa do terrorismo tem servido ao
Estado para criminalizar lutas e movimentos radicais, ou simplesmente
de mera contestação a opções político-económicas lesivas dos
interesses das populações, como o comboio de alta velocidade, por
exemplo. Para isto, tem contado com a ajuda da presença omnipresente
de alguns meios de comunicação, como a televisão, e de alguns
jornalistas que são meros transmissores de fontes policiais ou dos
interesses do capital. No entanto, como sabemos, nunca houve pior
terrorismo que o terrorismo de Estado. Desde que existe, que o Estado
tem ao seu serviço todo um aparelho político-repressor constituído
por polícias, exércitos, tribunais, prisões, campos de
concentração, hospitais psiquiátricos, etc.
Com este cenário de
fundo, verifica-se que, de todas as “ideologias” alternativas,
apenas o Anarquismo continua a opor-se ao Estado e ao capitalismo,
tornando-se no único conjunto de ideias que não parou no tempo e
que manteve as suas respostas coerentemente alternativas e actuais.
Umas linhas finais para
sublinhar que utilizei sempre a palavra Anarquismo para facilitar a
escrita, porque a palavra correcta seria Anarquismos. Na minha
opinião, não há apenas um anarquismo, mas uma pluralidade de
expressões deste anarquismo do qual ninguém é proprietário. Passa
também pela nossa capacidade de aceitar estas diferenças e por esta
pluralidade de expressões, o conseguirmos ser uma alternativa
consistente e actuante à triste realidade que nos rodeia e esmaga.
Não pode haver um anarquismo, mas vários anarquismos. Estes devem
ser a expressão e a vontade genuína da sensibilidade e da liberdade
de cada indivíduo e de cada grupo.
(*) Quando o texto foi escrito Portugal ainda era governado pela esquerda. Se é que faz alguma diferença.
(*) Quando o texto foi escrito Portugal ainda era governado pela esquerda. Se é que faz alguma diferença.
parabenizo "os inimigos do rei" por mais esta "aquisição" de peso...
ResponderExcluirvida longa!
[tio.taz] extremamente sagaz! Pontualíssimo este texto - parabéns ao site e ao autor, estou divulgando na medida do possível!
ResponderExcluirabxxx
www.coletivokrisis.blogspot.com
Bom texto, parabéns...refletindo e atuando...é isso aí!
ResponderExcluirabs
carlos pronzato
www.lamestizaaudiovisual.blogspot.com
Belo texto..continuemos refletindo e atuando...
ResponderExcluir