Por Carlos Baqueiro
Há algumas semanas atrás fui assistir na Mostra
de Cinema Internacional de São Paulo o documentário Camp 14 que aborda de forma
geral questões relativas aos Campos de Concentração existentes em uma das mais
ferozes ditaduras do mundo, a Coréia do Norte. E de forma particular a vida de
um dos prisioneiros de um dos campos: Shin Dong-Huyk, que nasceu ali em 1983.
Antes de ver o filme, ou ler qualquer resenha
sobre ele, fiquei imaginando como o diretor teria entrado naquele país para
fazer as filmagens das prisões. Com certeza, imaginei, o diretor alemão Marc
Wiese entrou naquele país com câmera escondida em um broche preso a camisa,
conseguindo burlar a vigilância do Estado Comunista sobre ele.
Na realidade, para minha surpresa, Wiese
utilizou-se no documentário de uma ferramenta que, normalmente no cinema, está mais para ficção
que para documentar a realidade: a História em Quadrinhos.
Boa parte do documentário é construída com
recursos de desenhos que simulam a vida do “ator social”, um norte-coreano que
nasceu na prisão, a partir de um estupro sofrido por uma prisioneira por um também encarcerado, que tinha estabelecido vínculos "amistosos" junto aos carcereiros e a ganhou de presente. Ali ele aprendeu
que até mesmo “dedurar” a sua mãe era justificável se quisesse continuar
vivo. E ali ele viveu até os 22 anos quando conseguiu fugir.
Assim, baseando-se nas imagens esfumaçadas
que se encontravam na memória de um ser humano, que devido às circunstâncias (Shin
Dong lembra que ficou sendo torturado por vários dias, mesmo tendo sido um
delator sobre as ideias do seu irmão e da mãe de fugirem) têm grandes chances de
não serem autênticas, nem fidedignas.
Felizmente, nestes tempos de pós-modernidade,
o diretor teve a licença poética e a capacidade técnica necessárias para usar
recursos ficcionais próprios à arte cinematográfica.
Mas esse uso de ferramentas peculiares à
ficção também pode ser encontrado aqui no Brasil. O documentário Tropicália é
um exemplo claro disso. Ao lado da exposição de imagens de arquivos, entrevistas
e muitas canções dos polêmicos anos 1967 a 1969, o filme de Marcelo Machado
também traz dentro dele, quase explodindo para fora da película uma frequente
utilização de imagens e sons que lhe dão um aspecto de obra artística e psicodélica de
ficção, particularmente quando em plena exposição de alguma entrevista cores
fora da realidade real vão ocupando a tela, numa metáfora visual das próprias
ideias tropicalistas.
A questão de se mostrar a verdade ou
demonstrar a construção de uma verdade (com suas nuances ficcionais) tem sido recorrente há muito tempo entre
documentaristas. Dziga Vertov foi um deles. Jean Rouch outro.
Ambos declarando seu amor ao cinema
documentário nas entrelinhas de suas produções. O primeiro deixando claro que o
documentário também é representação da realidade. O segundo lançando
literalmente aos olhos dos espectadores o sangue das mandingas dos povos
africanos, como uma “verdade provocada”: Uma interpretação do mundo idolatrada
pela maioria dos intelectuais europeus, e considerada sarcástica e
preconceituosa por muitos africanos ligados ao cinema.
A verdade é deste mundo, como nos advertiria
Michel Foucault. E nesse caminho, nem mesmo os jornalistas conseguem se
desvencilhar da esquizofrenia realidade versus ficção.
Nem os jornalistas e comunicadores sociais
conseguem se desvencilhar desse debate. Aliás jornalistas sempre discutiram
sobre as questões de parcialidade, objetividade e isenção, como partes
necessárias a busca de uma possível interpretação da realidade.
Em documentários, com espírito jornalístico, como Simonal - Ninguém Sabe
o Duro que Dei e Raul - O Início, o Fim e o Meio é grande a preocupação dos
diretores em buscar um equilíbrio entre os que adoravam e os que odiavam os
personagens principais dos documentários.
As vidas de Wilson Simonal e Raul Seixas são dissecadas
em busca da compreensão do que os levou ao fundo do poço artístico. Os
diretores, no desejo de encontrar respostas, vão trazendo a tona novas
interpretações das ações e intenções dos personagens. Os focos (tão amados pelos
jornalistas) vão saltitando pelos filmes tentando montar um quebra cabeças onde
a verdade pode ser debatida em via dupla, ou mesmo tripla. Onde os que odeiam podem
começar a amar, e vice-versa.
Essa capacidade contemporânea de
flexibilização da verdade é obra da própria história do cinema. Pois, como diz
Consuelo Lins, “o ato de filmar implica uma metamorfose daqueles que filmam e
dos que são filmados, que pode ser assumida ou disfarçada por convenções
estabelecidas”.
Com certeza, essa capacidade mimética chega até o
espectador e é um forte apelo do Camp 14, onde se iniciou este texto. Ao final do
documentário o diretor nos deixa com uma sensação de náusea,
a partir das confissões do ex-prisioneiro e das imagens atuais, de seu dia-a-dia, no mundo "livre", pois a
partir dali não sabemos mais o lugar ideal daquele personagem. E o pior: o documentário retira-nos
da segurança de nosso lugar no mundo real, enfraquecendo nossas certezas, sejam quais forem.
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