Filmes Comentários

sábado, 8 de dezembro de 2012

CAMP 14: Refletindo sobre o Documentário

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Por Carlos Baqueiro

Há algumas semanas atrás fui assistir na Mostra de Cinema Internacional de São Paulo o documentário Camp 14 que aborda de forma geral questões relativas aos Campos de Concentração existentes em uma das mais ferozes ditaduras do mundo, a Coréia do Norte. E de forma particular a vida de um dos prisioneiros de um dos campos: Shin Dong-Huyk, que nasceu ali em 1983.
Antes de ver o filme, ou ler qualquer resenha sobre ele, fiquei imaginando como o diretor teria entrado naquele país para fazer as filmagens das prisões. Com certeza, imaginei, o diretor alemão Marc Wiese entrou naquele país com câmera escondida em um broche preso a camisa, conseguindo burlar a vigilância do Estado Comunista sobre ele.
Na realidade, para minha surpresa, Wiese utilizou-se no documentário de uma ferramenta que, normalmente no cinema, está mais para ficção que para documentar a realidade: a História em Quadrinhos.
Boa parte do documentário é construída com recursos de desenhos que simulam a vida do “ator social”, um norte-coreano que nasceu na prisão, a partir de um estupro sofrido por uma prisioneira por um também encarcerado, que tinha estabelecido vínculos "amistosos" junto aos carcereiros e a ganhou de presente. Ali ele aprendeu que até mesmo “dedurar” a sua mãe era justificável se quisesse continuar vivo. E ali ele viveu até os 22 anos quando conseguiu fugir.
Assim, baseando-se nas imagens esfumaçadas que se encontravam na memória de um ser humano, que devido às circunstâncias (Shin Dong lembra que ficou sendo torturado por vários dias, mesmo tendo sido um delator sobre as ideias do seu irmão e da mãe de fugirem) têm grandes chances de não serem autênticas, nem fidedignas.
Felizmente, nestes tempos de pós-modernidade, o diretor teve a licença poética e a capacidade técnica necessárias para usar recursos ficcionais próprios à arte cinematográfica.
Mas esse uso de ferramentas peculiares à ficção também pode ser encontrado aqui no Brasil. O documentário Tropicália é um exemplo claro disso. Ao lado da exposição de imagens de arquivos, entrevistas e muitas canções dos polêmicos anos 1967 a 1969, o filme de Marcelo Machado também traz dentro dele, quase explodindo para fora da película uma frequente utilização de imagens e sons que lhe dão um aspecto de obra artística e psicodélica de ficção, particularmente quando em plena exposição de alguma entrevista cores fora da realidade real vão ocupando a tela, numa metáfora visual das próprias ideias tropicalistas.
A questão de se mostrar a verdade ou demonstrar a construção de uma verdade (com suas nuances ficcionais) tem sido recorrente há muito tempo entre documentaristas. Dziga Vertov foi um deles. Jean Rouch outro.
Ambos declarando seu amor ao cinema documentário nas entrelinhas de suas produções. O primeiro deixando claro que o documentário também é representação da realidade. O segundo lançando literalmente aos olhos dos espectadores o sangue das mandingas dos povos africanos, como uma “verdade provocada”: Uma interpretação do mundo idolatrada pela maioria dos intelectuais europeus, e considerada sarcástica e preconceituosa por muitos africanos ligados ao cinema.
A verdade é deste mundo, como nos advertiria Michel Foucault. E nesse caminho, nem mesmo os jornalistas conseguem se desvencilhar da esquizofrenia realidade versus ficção.
Nem os jornalistas e comunicadores sociais conseguem se desvencilhar desse debate. Aliás jornalistas sempre discutiram sobre as questões de parcialidade, objetividade e isenção, como partes necessárias a busca de uma possível interpretação da realidade.
Em documentários, com espírito jornalístico, como Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei e Raul - O Início, o Fim e o Meio é grande a preocupação dos diretores em buscar um equilíbrio entre os que adoravam e os que odiavam os personagens principais dos documentários.
As vidas de Wilson Simonal e Raul Seixas são dissecadas em busca da compreensão do que os levou ao fundo do poço artístico. Os diretores, no desejo de encontrar respostas, vão trazendo a tona novas interpretações das ações e intenções dos personagens. Os focos (tão amados pelos jornalistas) vão saltitando pelos filmes tentando montar um quebra cabeças onde a verdade pode ser debatida em via dupla, ou mesmo tripla. Onde os que odeiam podem começar a amar, e vice-versa.
Essa capacidade contemporânea de flexibilização da verdade é obra da própria história do cinema. Pois, como diz Consuelo Lins, “o ato de filmar implica uma metamorfose daqueles que filmam e dos que são filmados, que pode ser assumida ou disfarçada por convenções estabelecidas”.
Com certeza, essa capacidade mimética chega até o espectador e é um forte apelo do Camp 14, onde se iniciou este texto. Ao final do documentário o diretor nos deixa com uma sensação de náusea, a partir das confissões do ex-prisioneiro e das imagens atuais, de seu dia-a-dia, no mundo "livre", pois a partir dali não sabemos mais o lugar ideal daquele personagem. E o pior: o documentário retira-nos da segurança de nosso lugar no mundo real, enfraquecendo nossas certezas, sejam quais forem.

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