Clécio Max Rios Borges é radialista e jornalista, e nos traz
a entrevista da consulesa da França em São Paulo, Alexandra Baldeh Loras, que é
negra e muçulmana, como ela mesma se descreve e, por isso achamos interessante
ver o ponto de vista dela:
"Diga, meu velho, tudo bem?
Dê uma olhada nessa entrevista.
Forte abraço, Clécio."
Liberdade, igualdade e fraternidade na França? Para quem?
13/01/2015 03h00
A questão acima é colocada por Alexandra Baldeh Loras, 37,
francesa de origem muçulmana e judaica, que vive no Brasil há dois anos como
consulesa do país em São Paulo.
Como todos os cidadãos franceses, ela procura respostas para
os atentados terroristas em Paris em meio ao luto. Formada em ciências
políticas e estudiosa do fenômeno da integração, ela assina um "[blog
sobre minorias]"http://www.alexandraloras.com.
Fez sua tese de mestrado na prestigiosa SciencePo (L'École
Livre de Sciences Politiques, onde se forma a elite política) sobre os negros
na televisão francesa, onde foi apresentadora por sete anos.
Alexandra afirma que "a França ainda precisa se assumir
como nação multicultural e multirracial" para evitar que alguns de seus
filhos de ascendência árabe e africana não sejam "adotados pelo
terrorismo".
A seguir, trechos da entrevista concedida dois dias depois
do ataque que matou 12 jornalistas do "Charlie Hebdo" e na tarde do
sequestro que acabou na morte de quatro reféns.
*
UM NOME FAMILIAR
Quando vi nos telejornais que o sequestrador do supermercado
kosher em Paris se chamava Coulibaly, fiquei rezando para que não fosse um dos
meus primos. É um sobrenome comum na África. O terrorista que matou quatro
reféns não era meu parente, mas é como se fosse. É negro e francês como eu. O
que aconteceu na vida dele para que se tornasse tão violento?
As mortes na redação do "Charlie Hebdo" e no
supermercado são atos detestáveis do terrorismo. Antes de falar de liberdades,
o respeito pela vida humana me leva a condenar os ataques categoricamente como
um ato bárbaro inaceitável. Estou de luto pelas famílias das vítimas.
Ouvi e li nas redes sociais muitas reações violentas:
"esses animais, selvagens, negro sujo, árabes imundos...". A lista de
insultos é longa, mas gostaria de convidar a todos a se perguntarem o que levou
esses franceses a cometer tais crimes hediondos. Os terroristas passaram alguns
meses no Iêmen sendo treinados e várias décadas na França. Então, a base da
identidade deles é francesa.
Apesar do nosso lema "liberdade, igualdade e
fraternidade", fomos de geração em geração condicionados a pensar que o
racismo e o sexismo são naturais. Uma hierarquia construída durante séculos
declarou que os homens são superiores às mulheres, que só tiveram direito de
voto em 1944, e que os brancos eram superiores a árabes e negros.
Foi uma dor imensa crescer na França como negra. Sou de
origem muçulmana, já que meu pai é da Gâmbia, um país da África Ocidental.
Nasci em Paris, de mãe francesa, branca e católica.
O que me machucava quando criança é que sempre me
perguntavam de onde vinha. Até os meus 21 anos, eu não conhecia Gâmbia. Fui
criada na França. Meu avô era comunista, foi secretário-geral do partido
anarquista, mas era super racista.
O "Charlie Hebdo" é um jornal de esquerda, que
sempre publicou charges que podem ser interpretadas como xenófobas, racistas e
antissemitas. Defendem um Estado laico, o que não quer dizer ateísta. Ser
laico, na verdade, é respeitar todas as religiões. Que liberdade de expressão
estamos defendendo? Pode-se faltar com respeito a profetas reverenciados por
uma comunidade que não tem poder nos meios de comunicação para se expressar?
JE SUIS CHARLIE
É muito fácil dizer 'Eu Sou Charlie'. Eu gostaria que todos
fossem Charlie também quando jogaram o coquetel molotov na Redação anos atrás.
Quando eles desenhavam Maomé de quatro. Quando Phillipe Val [ex-editor] foi
vítima de violência da extrema direita. Quando o Charb [Stéphane Charbonnier,
diretor da publicação morto no ataque] precisou de escolta policial por oito
anos. Não é ser Charlie só hoje, quando houve a morte deles.
Eu me emociono ao ver a caminhada de quase 4 milhões de
pessoas em Paris. É bom ver a França tão unida. Acho muito triste que tenham
morrido personalidades conhecidas. Mas me entristece também a explosão de um
carro bomba que matou 37 pessoas no Iêmen, em um atentado do mesmo grupo da
Al-Qaeda, quatro dias antes do de Paris. Por que ninguém falou mais disso? As
vidas do Charb e do Wolinski valem mais?
Após os ataques, tenho escutado: "Temos que matar esses
terroristas". Vamos matar como eles mataram? É essa a solução? Sou contra
a pena de morte. Gostaria de conhecer as reivindicações deles. Por que se
tornaram loucos assim? Por que caíram no extremismo?
Para eles, talvez, nós é que sejamos terroristas. Quantas
atrocidades foram cometidas nas ex-colônias? Pegaram argelinos, marroquinos,
senegaleses para lutar pela França e defendê-la para ser um país livre. Aprendi
na escola que eram voluntários. Hoje, documentários mostram que não tiveram
escolha, as famílias eram ameaçadas. Há um lado da história da França muito
obscuro, que ela não quer assumir.
A pátria mãe francesa parece ter esquecido os 400 anos de
escravidão e 300 de colonização. A França ainda não se desculpou pela dores
imensas que causou na África. Precisa se aceitar como sociedade multicultural e
multirracial. E hoje ela não quer assumir esses filhos. Eu me coloco entre
eles. Nos sentimos rejeitados. E me refiro aos africanos, aos árabes, aos
asiáticos e aos judeus também. A todas as minorias.
PAI TERRORISMO
E quando um filho não tem pai, ele pode ter outro que o
acolhe e lhe dá importância. O "pai terrorismo" pegou alguns desses
filhos e deu a eles o senso de pertencimento a um grupo, lhes deu espaço,
comida e dinheiro. Precisamos tentar resgatá-los.
Falam: "Ah, eles não se integraram". Eles têm que
adivinhar como se integrar? A riqueza da cultura deles não tem que desaparecer.
É a riqueza da França.
O prato preferido do francês hoje é o cuscuz. Entre os
artistas mais amados estão Omar Sy —ator de origem senegalesa que ganhou o
César [o Oscar francês], pelo filme "Os Intocáveis" (2011)— e Jamel
Debbouze, ator e comediante de origem marroquina [de "Astérix e Obélix -
Missão Cleópatra"].
É preciso ter coragem de pesquisar sobre esses jovens que
vão para a Al-Qaeda. Saber o que vai pela cabeça deles para trilhar esse lado
da escuridão. Do que eles precisam para se sentir parte do povo francês?
Sempre que abrem espaço para o debate sobre a França
multirracial e multicultural convidam rappers e jogadores de futebol para
falar, que nem sempre estão preparados para debater com o outro lado. Quase
nunca convidam intelectuais. Só o Tariq Ramadan [professor da Universidade de
Oxford, de origem Egípcia e autor de "Radical Reform, Islamic Ethics and
Liberation"], que é muito inteligente, mas sempre pegam frases dele fora
de contexto.
É como dar muito espaço para Michel Houellebecq [escritor
francês que acaba de lançar "Submissão", livro sobre uma Franca
governada por um partido muçulmano em 2022].
Eu não concordo com ele e outros pensadores, mas se falamos
de liberdade de expressão temos que deixar todo mundo se exprimir. Não só os
pensadores da extrema direita, que está crescendo.
É assim que criam um mundo muçulmano que eu não vejo ao meu
redor. Entre todos os meus amigos e na minha família, ninguém é extremista.
Eles não acham o lugar deles na sociedade francesa nem na África. Quando vão
pra lá, tampouco são bem-vindos.
MONOCROMÁTICA
No poder e na televisão também, onde trabalhei como
jornalista e apresentadora nos canais France 3 e TF1, sempre era a única negra.
Aprendi muitas coisas tendo esse olhar de "infiltrada".
A França é ainda uma espécie de monarquia. Cortaram a cabeça
do rei, mas ele ainda vive na elite oligárquica. Houve a revolução de 1789, mas
todo o espectro atual de líderes empresariais e políticos é aristocrata. Eles
não representam a diversidade da França de hoje.
É o mesmo em governos de direita ou de esquerda: são brancos
e elitistas. São intelectuais que cresceram no "quinto
arrondissement" [região administrativa de Paris], foram estudar no sexto e
trabalhar no sétimo. São da "rive gauche" [margem esquerda do Sena].
Não conhecem o que acontece lá fora.
Na ENA [École Nationale D'Aministration, símbolo da
meritocracia republicana francesa], onde os presidentes estudam, só tem
brancos. Na SciencePo, todos os alunos afrodescendentes franceses acabam indo
trabalhar nos Estados Unidos e na Inglaterra. Eu me formei lá.
Muitos falavam: "Ah, você é parte da cota?" Eles
selecionam alguns alunos dos guetos que tiveram notas excelentes. Pensam que
cheguei lá como parte desse programa. Respeito muito os cotistas, mas não
percebem que me insultam ao concluir que uma negra não pode entrar lá por outro
caminho.
INVISIBILIDADE
Fiz meu mestrado sobre a invisibilidade dos negros na
televisão francesa. Quando vamos sair dos estereótipos? Tenho 50% de sangue
branco, mas minha pele é negra. Tenho 50% de sangue africano e meu filho é louro.
A pele de meu pai era de ébano. É um desafio ser mãe de um negro que é branco
de pele.
Vejo no Brasil um racismo diferente. Quando vou ao clube com
meu filho, me olham torto porque não estou usando branco como as babás.
Comecei a dar palestras nas escolas públicas daqui para
trabalhar a autoestima das crianças de cor. Falo dos inventores e das grandes
figuras negras. Aqui também os negros só são retratados dentro do estereótipo:
no esporte, na música e no crime. Falo para os estudantes o que gostaria de ter
ouvido na escola, mas que só descobri aos 30 anos no meu mestrado sobre o tema:
a geladeira foi inventada por um negro, assim como a antena parabólica e o
marca-passo.
A BABÁ
Os brancos têm que se olhar e ver os privilégios que têm.
Precisam entender o que é ser negro ou árabe diariamente. E o que vem com isso,
quando se está procurando um apartamento para alugar ou concorrendo a uma vaga
de emprego.
O que é muito triste é que temos um marketing ótimo: a
França defensora dos direitos humanos, a França da "igualdade, liberdade e
fraternidade". Onde você vê igualdade e fraternidade? Quem tem liberdade
de expressão? Só um lado.
Onde você vê os ciganos se expressarem? E eles estão lá há
várias gerações. Você ouve falar dos sem-teto? Onde se fala dos jovens que não
podem entrar numa discoteca por terem mais melanina?
O conhecimento é a melhor arma para combater a desigualdade
e desconstruir os fundamentos do racismo e do extremismo. Quase nenhum
escritor, filósofo, cientista negros e árabes ganha visibilidade na televisão e
nos livros didáticos na França.
Ao investigar essa realidade, descobri que eles existem,
sim, e que potencial e talento não têm nada a ver com a quantidade de melanina
na pele. Precisamos reparar e aliviar a dor que nossa sociedade gera sem que
nem percebamos. E tentar entender quanto é nossa responsabilidade ter criado
esses monstros.
E eu respondi ao nosso querido Max, para continuar o debate
de ideias:
Querido Clécio,
acho que Você e eu endossamos grande parte do que ela diz,
mas nota-se que ela "esquece" alguns fundamentos, o principal deles,
por exemplo, é a religião que ela adotou. Ela é muçulmana, só que a mãe, como
ela mesma diz, é católica. Ela é muçulmana porque os homens muçulmanos não
permitem aos filhos a escolha de outra religião. E ela adota uma religião que:
1) extirpa o clitóris das meninas (dizem que estão parando, em alguns lugares,
mas está lá no Corão, não tiraram...); 2) considera a mulher propriedade do pai
e depois do marido; 3) considera a mulher disponível para núpcias com homem de
15 anos ou de 75 anos, a partir dos 9 anos de idade; 4) prevê apedrejamento
("lapidação") de mulher que traia o marido e prevê nada para homem
que traia a mulher; 5) uma religião que manda enforcar homoafetivos ou
encarcerá-los; 6) uma religião que permite que um católico ou budista entre
para o Islam, mas pune com a morte se um muçulmano passar a ser cristão ou
budista no que eles chamam de apostasia.
Quer dizer, é difícil defender uma religião destas. O problema
não é ser árabe ou ser africano, problema é ser muçulmano, um tipo de fascismo
intolerável.
No resto, concordo com
ela, é um fardo ser diferente em qualquer sociedade, em qualquer ambiente e
diferentes somos todos. Um branco rico baiano, quando chega em São Paulo é
mal-quisto. Um branco rico brasileiro, quando chega em Nova York é mal-visto.
Como disse outro francês, Jean-Paul Sartre, "o homem é uma paixão
inútil" ou como diz o nosso doutor Ruyzin, filho da jornalista Ângela
Guimarães, "este é o ser humano, uma espécie que deu errado".
Concordo com ambos.
Tony Pacheco